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26/04/21

O Airbnb não morreu! – Considerações acerca do julgamento do Resp 1.819.075/RS

Por Regina Céli Martins

No último dia 20 de abril, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça julgou o Recurso Especial nº 1.819.075/RS, o qual buscava analisar a possibilidade ou não de proibição por convenção de condomínio do uso de plataforma airbnb para locação dos imóveis residenciais.

O resultado do referido julgamento foi noticiado pelas mais diversas plataformas e sites jurídicos como uma derrota ao airbnb (que funcionava apenas como assistente dos condôminos proprietários). Pretende esse arrazoado esclarecer que a definição desta matéria está longe de ser solucionada! O julgamento (3 votos contra1) que consagrou o resultado, exige uma análise das circunstâncias fáticas do caso, em conjunto com os fundamentos levantados pelos ministros, na definição de seus votos.

Isto porque, o caso sub examen se trata de uma lide proposta por um condomínio edilício residencial, cuja convenção vedava a destinação comercial de suas unidades imobiliárias. No outro lado do polo, estavam proprietários que dividiram os cômodos de suas unidades (sala e quarto) por meio de divisórias de escritório, para maior aproveitamento dos espaços, locando-os ao mesmo tempo a pessoas diversas e sem conexão entre si. Ainda ofertavam serviços de lavanderia e uso do wi fi, sob remuneração apartada.

Esta situação fática particular foi o ponto nodal para o resultado do julgamento tal qual apresentado, sendo relevante a análise dos debates havidos pelos julgadores, para a conclusão do Especial supracitado.

1. O voto do Exmo. Ministro Relator

Em seu voto em 2019, o Ministro Luis Felipe Salomão, Relator do Especial, entendeu não ser possível ao condomínio restringir locações pela plataforma airbnb e similares, uma vez que estas não estariam inseridas no conceito de hospedagem, mas sim, tratar-se-iam de um contrato atípico.

Ponderou à época – o que reiterou em fala posterior ao voto divergente do Ministro Raul Araújo – que o Judiciário deve se adaptar para regrar os avanços disruptivos da sociedade moderna.

Um destes avanços seria a chamada economia de compartilhamento, que atualmente se vê no uso comum e simultâneo de carros, casas, livros, restaurantes, dentre outros itens.

Tentou o magistrado distinguir o caso fático sob julgamento do conceito que se estaria referendando e serviria de paradigma para outros julgados, tendo pontuado, de forma reiterada, que o debate fundamental seria a descaracterização da destinação residencial da uma unidade imobiliária, pelo simples uso da plataforma airbnb, para veiculação de anúncio de locação.

Como precedente, em defesa da livre iniciativa, trouxe o Recurso Extraordinário nº 1.054.110 de relatoria do Ministro Luis Roberto Barroso, cuja ementa dispõe, em suma, que “em um regime constitucional fundado na livre iniciativa, o legislador ordinário não tem ampla discricionariedade para suprimir espaços relevantes da iniciativa privada.”.

Por fim, com o fito de rememorar seus argumentos de um ano e meio atrás, em sua breve argumentação posterior ao voto divergente do Ministro Raul Araújo, trouxe relevante dado, no sentido de que apenas uma destas plataformas acrescentou dois bilhões de reais ao PIB brasileiro em 2016, sendo tais atividades de economia compartilhada relevantes para a estruturação da economia brasileira.

Encerrou seu arrazoado solicitando que não houvesse confusão entre destinação econômica da unidade imobiliária, com desenvolvimento de atividade comercial, tratando-se esta última de um conceito jurídico específico normatizado.

2. A divergência inaugurada

A retomada do julgamento do Especial desta semana foi iniciada com a proclamação do voto do Ministro Raul Araújo, que inaugurou a divergência do voto do Ministro Salomão.

Em suas razões, trouxe conceitos doutrinários a fim de promover à diferenciação entre residência, domicílio, morada e hospedagem e aproveitou este gancho para esmiuçar as características fáticas do caso sob julgamento – o que inclusive fez por diversas vezes em seu extenso voto. Concluiu seu posicionamento no sentido de que estaria caracterizado um serviço de hospedagem atípico, e não um contrato de locação.

De fato, a locação sub judice tinha caráter singular: um apartamento residencial setorizado fisicamente para melhor pulverizar a oferta locatícia, aliada à contratação de outros serviços, e isso fez a divergência, que aqui foi vencedora, comparar o uso do imóvel a um hostel.

Sobre a veiculação de anúncios de locação na plataforma airbnb, foi cirúrgico: o seu uso faz presumir a ausência de caráter residencial no uso da unidade imobiliária.

Entendeu o julgador que as locações simultâneas e o pagamento antecipado da estada, tal qual exigido pela plataforma, não se coadunam com o contrato de locação por temporada, positivado na Lei de Locação.

Instaurado o empate, este logo foi desfeito com o voto da Ministra Isabel Gallotti que, acompanhando a divergência, reforçou o posicionamento de que o uso da plataforma airbnb configuraria o uso não residencial do imóvel, porquanto teria claro intuito de lucro.

Ressalvou, entretanto, a possibilidade de uso da plataforma como meio de aproximação de locadores e locatários, desde que firmassem uma das formas de locação tipificadas pela Lei 8.245/91. Apenas desta forma o uso da plataforma escaparia do enquadramento como hospedagem atípica.

Último a votar, o Ministro Antônio Carlos acompanhou o voto divergente. Contudo, seus fundamentos nos levam a crer que se a situação fática fosse outra, talvez o resultado do julgado, que inaugurou o debate sobre o uso da plataforma airbnb nos Tribunais Superiores, também fosse diferente.

Logo no início de seu fundamento, o julgador salientou que o objeto sob debate era o caso concreto, e não a possibilidade de vedação do uso da plataforma airbnb por meio de convenção de condomínio.

Ponderou que o caso concreto se limitaria à qualificação do uso que os condôminos deram ao imóvel e, considerando as condições fáticas do caso, optou por seguir com o voto divergente, declarando não ser um bom case para se estabelecer um paradigma.

3.  Ausência de pacificidade no tema

Pelas fundamentações dos votos dos magistrados observa-se a possibilidade de futuro entendimento diverso sobre o uso do airbnb por condomínios residenciais pelo Superior Tribunal de Justiça, e até mesmo pela própria Quarta Turma, haja vista o voto reticente do Ministro Antônio Carlos e a ausência do Ministro Marco Buzzi, atualmente em licença médica, quem poderia trazer mais equilíbrio à equação.

Ainda é cedo para o mercado se movimentar e tomar medidas para se adaptar com base neste único julgado carregado de singularidades fáticas.

Entretanto, o mesmo revelou a imprescindibilidade da normatização do uso das plataformas digitais de economia compartilhada, que são tão necessárias à movimentação da economia brasileira.

Não é possível repelir o surgimento na sociedade de novas modernidades, ou de novos formatos contratuais, adotados e aceitos largamente pelo mundo, simplesmente porque eles não se encaixam nos modelos e padrões pré-estabelecidos pelas leis então existentes.

O avanço da tecnologia na sociedade é inexorável, e a norma jurídica deve acompanhar a carência de regramento de tais avanços e se adaptar, e não o oposto. O Direito não pode estacionar, proibir e coibir novas iniciativas econômicas não vedadas em lei. O regramento evitará a burla e o desenvolvimento desenfreado.

Como salientado pelo Ministro Salomão em seu aparte feito após o voto do Ministro divergente, não se pode solucionar o caso com uma simples rivalidade entre o direito à propriedade e o direito de vizinhança.

A dicotomia posta em debate é falaciosa, uma vez que os direitos opostos não se resumem a estes, e o debate é muito mais amplo, inclusive com ofensa à livre iniciativa, e com capacidade de afetar, em última instância, o resultado da economia brasileira.

O Supremo Tribunal Federal em análise de tema similar envolvendo a plataforma uber prezou pela proteção ao princípio constitucional acima citado, por garantir o progresso e a distribuição de riquezas[1]. Espera-se que o tema aqui debatido tenha o mesmo direcionamento no futuro.

[1] ADPF 449 Relator Min. Luiz Fuz, julgamento: 08/05/2019